Os aquíferos do Recife (PE) correm risco de salinização e
contaminação em razão da perfuração indiscriminada de poços tubulares
privados na capital pernambucana nos últimos anos.
O alerta foi feito pelo professor Ricardo Hirata, do Instituto de
Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Centro
de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas), durante a 1ª Reunião de
Avaliação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas
Globais (PFPMCG), realizada nos dias 28 e 29 de novembro em Bragança
Paulista, no interior de São Paulo.
“Houve um aumento impressionante de poços tubulares no Recife para
uso privado, com 100 a 200 metros de profundidade, que passaram a ser
utilizados como fonte suplementar de abastecimento de água na cidade,
principalmente pelas classes mais abastadas”, disse Hirata à Agência FAPESP.
“Devido a uma série de fatores, as águas desses poços e do aquífero
têm ficado salinizadas”, afirmou o pesquisador, que coordena um Projeto Temático,
financiado pela FAPESP, com o objetivo de avaliar a degradação das
águas subterrâneas em Recife no contexto das mudanças climáticas
globais.
O estudo é realizado no âmbito de um acordo
mantido pela FAPESP com a Fundação de Amparo à Pesquisa de Pernambuco
(Facepe) e a Agence Nationale de la Recherche (ANR), da França, e reúne,
do lado de São Paulo, pesquisadores do IGc, da Escola de Engenharia de
São Carlos da USP e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
De acordo com Hirata, uma das constatações feitas durante a
realização do projeto, iniciado no fim de 2011, é que tem ocorrido
mudanças no padrão de consumo e de interação dos moradores do Recife com
a água nas últimas décadas.
A exemplo de outras capitais nordestinas, a cidade registra, desde o
início da década de 1970, crescimento populacional e, consequentemente,
aumento da demanda por água potável.
Segundo Hirata, o abastecimento público dos 3,7 milhões de habitantes
da cidade é realizado pela Companhia Pernambucana de Saneamento
(Compesa) e baseado em fontes superficiais de água – como a de
reservatórios –, que abrange a região metropolitana de Recife.
Uma pequena região na área norte da cidade e próxima a Olinda é
abastecida por meio de águas subterrâneas, provenientes do aquífero
Beberibe.
Em razão de secas severas, como a ocorrida entre 1998 e 1999, e de
frequentes racionamentos de água, Recife aumentou o uso do já bastante
explorado aquífero por meio da perfuração de poços privados,
localizados, principalmente, na região central da cidade e em Boa
Viagem, contou o pesquisador.
“Existem, aproximadamente, 13 mil poços privados em Recife; é a
cidade brasileira com o maior número de captações de águas
subterrâneas”, destacou Hirata. “A maior parte deles é ilegal, com
existência desconhecida pelos órgãos administradores. Isso dificulta o
planejamento, pelo Estado, de um programa de gestão dos recursos
hídricos. Ao mesmo tempo, essa estrutura desconhecida garante a
segurança hídrica da cidade, porque esse abastecimento complementar de
água é fundamental em períodos de estiagem.”
Salinização dos aquíferos
Um dos principais problemas dos poços privados é que muitos se tornam
salinizados e são perdidos e abandonados. Uma das prováveis causas da
salinização é a intrusão de águas salinas do mar induzida pelo
bombeamento desordenado.
O bombeamento dos poços faz com que as águas salgadas de canais e
estuários, além de paleomangues (sedimentos que tiveram contato com
águas salgadas, quando o nível do mar era mais alto), penetrem no
aquífero, provocando sua salinização, explicou Hirata.
“Parte do aquífero de Boa Viagem, que é mais raso e de menor espessura, tem vários poços salinizados e abandonados”, disse.
“Uma vez salinizados os poços e o aquífero há pouco o que fazer. As
tecnologias de dessalinização são limitadas e os sistemas de tratamento
individual de água salgada de poços são muito caros”, ressaltou o
professor do IGc-USP.
A pesquisa verificou que os proprietários abandonam os poços ou os
aprofundam, até atingir os aquíferos Cabo e Beberibe – mais profundos
que o de Boa Viagem –, quando constatam que suas águas ficaram
salinizadas.
Além do aumento dos custos na extração de águas, os poços abandonados
também têm sido responsáveis por conectar as porções mais rasas e
salinizadas dos aquíferos com aquelas mais profundas e ainda
preservadas, ressaltou o pesquisador.
Uma descoberta que surpreendeu os pesquisadores foi o resultado das
medições da temperatura de recarga (temperatura inicial) desses
aquíferos profundos – o Cabo e o Beberibe –, feitas por meio de medições
de concentrações de gases nobres nas águas subterrâneas. Os resultados
indicaram que essas águas são muito velhas.
A temperatura das águas de recarga dos aquíferos do Cabo e de
Beberibe, por exemplo, era de 15 ºC, que coincide com o último período
glacial da Terra e leva a crer que os aquíferos foram recarregados há 10
mil anos, estimou Hirata.
“Ninguém imaginava que essas águas, localizadas a menos de cem metros
da superfície, fossem paleoáguas, ou seja, águas muito antigas”, disse.
Dependência comum
De acordo com o professor do IGc-USP, o problema da dependência de
águas subterrâneas para garantir a segurança hídrica da população de
Recife também é comum a outras capitais nordestinas, como Natal (RN) e
Fortaleza (CE), e às metrópoles brasileiras, como Brasília (DF) e São
Paulo, entre muitas outras cidades do país.
O caso mais crítico, segundo Hirata, é o de Natal, cujo sistema de
abastecimento público é baseado em águas subterrâneas, mas com poços
distribuídos na malha urbana da cidade.
Como a maior parte da malha urbana da capital do Rio Grande do Norte
não conta com rede de esgoto, as águas dos aquíferos e dos poços de
abastecimento público encontram-se contaminados por nitrato e, por isso,
são impróprias para uso.
Segundo Hirata, na tentativa de solucionar esse problema, tem-se
misturado água superficial – sem nitrato – à água dos poços para atender
às necessidades da população. Em razão da falta de água superficial na
capital potiguar, a quantidade de mistura é insuficiente para baixar os
níveis de nitrato da água dos poços.
“A cidade de Natal está recebendo água contaminada hoje porque não
consegue dispor de água limpa. Ela representa o extremo do problema da
falta de água que aflige o Nordeste”, avaliou.
Já cidades do Sudeste como São Paulo dependem menos das águas
subterrâneas, uma vez que a região metropolitana da cidade é abastecida
por grandes sistemas de águas superficiais, como os de Cantareira,
Cotia, Alto Tietê e Guarapiranga.
Estima-se, no entanto, que existam 12 mil poços privados em São
Paulo, dos quais, a exemplo dos do Recife, metade é ilegal e que,
juntos, retiram 10 metros cúbicos de água subterrânea por segundo,
representando a quarta fonte mais importante de abastecimento da cidade,
entre os oito sistemas hoje em operação.
Se por um problema de contaminação ou aumento do custo de extração
essa fonte de abastecimento de água fosse perdida, a população ligada a
essa rede fecharia seus poços e, imediatamente, migraria para a água da
rede pública.
Essa migração de fonte de água poderia fazer com que o sistema de
abastecimento da cidade, que atende hoje a população com 65 metros
cúbicos de água superficial por segundo, entrasse em colapso, estimou
Hirata.
“A segurança hídrica da cidade de São Paulo é frágil. É claro que a
possibilidade de perder todos esses poços em um período curto de tempo,
como o de um ano, é quase impossível. Mas existe uma fragilidade no
sistema, porque não há políticas eficientes para águas subterrâneas na
cidade, uma vez que elas não são vistas como uma fonte de abastecimento
importante”, ressaltou Hirata.
Nesse sentido, a segurança hídrica da capital paulista e de outras
cidades brasileiras, como Recife, está nas mãos de diversos usuários
privados – os proprietários dos poços –, que, mesmo sendo ilegais, têm
uma função importante porque diminuem a pressão por água do sistema de
abastecimento principal, avaliou o pesquisador.
O papel desses atores no sistema de abastecimento de água das cidades
brasileiras, no entanto, não está sendo avaliado corretamente, apontou.
“A solução para o abastecimento de cidades como Recife e São Paulo não é
esquecer a água subterrânea, mas somá-la às águas superficiais, porque
são recursos muito complementares”, afirmou.
“Esse sistema integrado é uma das melhores estratégias que a própria
natureza está dando para superarmos os problemas advindos das mudanças
climáticas globais”, avaliou.
De acordo com o pesquisador, as águas subterrâneas representam o
grande reservatório de água da Terra, sendo responsáveis por 95% da água
doce e líquida do planeta, e são usadas por 2 a 3 bilhões de pessoas no
mundo.
No Brasil, segundo ele, entre 35% e 45% da população utiliza água
subterrânea e 75% dos municípios do Estado de São Paulo são abastecidos
total ou parcialmente por essa fonte de água. “Apesar da importância
desse recurso, ele não costuma frequentar, infelizmente, a agenda
política dos órgãos decisores de gestão de recursos hídricos”, disse
Hirata.
Agência FAPESP