A ministra Kátia Abreu, do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo Dilma Rousseff, poderia
consultar o capítulo sobre os Povos Indígenas no relatório final da
Comissão Nacional da Verdade, lançado em dezembro, para perceber que não
foram os indígenas que “saíram da floresta e passaram a descer nas
áreas de produção”, como ela afirmou em entrevista à Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo.
Foram
empreendimentos agropecuários e extrativistas que desmataram e ocuparam
terras indígenas em regiões como o Sul do Bahia, o Sul de Mato Grosso
do Sul e o Oeste do Paraná, expulsando essas populações para a beira de
rodovias, a periferia das cidades ou antigas reservas superlotadas e que
oferecem condições de vida extremamente precárias.
E, por sinal,
essa ideia que a ministra utiliza de que se teria de “tomar o Rio de
Janeiro, a Bahia'' e devolver aos indígenas para ser justo com eles
quando questionada se as terras reivindicadas não eram deles é
simplesmente um argumento apagógico, a velha estratégia do “reductio ad
absurdum”, muito empregada pelos ruralistas nessas discussões.
Porque
em regiões como as mencionadas acima, onde está hoje grande parte dos
conflitos envolvendo demarcações, a ocupação intensiva das terras,
expulsando de fato os indígenas, não aconteceu em 1500, no período
colonial ou no século 19. Aconteceu, majoritariamente, no período
autoritário que vivemos no século 20. Além disso, os indígenas não estão
pedindo “o Brasil todo”, estão reivindicando porções de terra que são
muito pequenas em comparação com o que o agronegócio ocupa nessas
regiões.
E quanto à ideia de que a Justiça “O STF já decidiu que
terra demarcada não pode ser ampliada”, vale dizer que a discussão desse
tópico não se esgotou, na própria Suprema Corte, e que, mesmo que já
houvesse decisão final a respeito, ainda teremos de conversar muito
sobre o significado de “terra demarcada”.
Pois as antigas reservas
do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Funai não eram definidas em
diálogo com as populações indígenas, e sim arbitrariamente, sem levar em
conta as necessidades reais desses grupos para manter uma sobrevivência
digna. Afirmar o contrário é uma tentativa de ganhar no tapetão – ou no
grito.
Por fim, uma dúvida: qual o conceito de latifúndio que a
ministra adotou ao afirmar, na entrevista, que o “latifúndio não existe
mais''?
Porque, infelizmente, apesar de todo o acúmulo de
discussão sobre o tema, o termo “latifúndio'' não aparece nenhuma vez
na Constituição Federal de 1988, por conta da pressão dos ruralistas na
Constituinte. Ela fala apenas de “função social da propriedade''.
Contudo, apesar de não haver uniformidade, o termo é amplamente usado
pela sociedade, técnicos, políticos e academia para definir unidades
tanto pelo seu tamanho (2500, 3000, 5000 hectares…) quanto por ser uma
unidade deficiente em relação às suas possibilidades socio-econômicas e
físicas do meio.
Não há como negar que a concentração de terra nas
mãos de poucos é gritante por aqui. Considerando o grupo de
estabelecimentos rurais com 2500 hectares ou mais, um total de 15.012
unidades reunia 98.480.672 hectares de terra, de acordo com o último Censo Agropecuário brasileiro, divulgado em 2009.
Ou seja, 0,29% das unidades do país concentrava 29,8% da área para a produção agropecuária.
A
média é de 6560 hectares. Apenas reforçando, isso é uma média. Porque
atores econômicos controlam áreas muito maiores. Por exemplo, o Incra no
Pará notificou, no ano passado, o grupo Santa Bárbara, ligado ao
banqueiro Daniel Dantas e que é voltado à criação de gado, para
vistoriar 21 mil hectares com fins de reforma agrária. A Comissão
Pastoral da Terra denuncia de que essas p áreas são, na verdade, terras
públicas.
Ao mesmo tempo, a soma das áreas dos lotes com até 200
hectares representa apenas 30% do total da área, mas responderam por 84%
das pessoas ocupadas nas propriedades rurais. Sim, o emprego no campo
está concentrado no pequeno e médio produtor e não no grande.
Detalhe
importante: latifúndio é uma ideia, produtividade é outra. Há
discussões que se arrastam no país por falta de coragem do governo
federal para atualizar os índices de produtividade – que, ultrapassados,
empacam a reforma agrária.
E há discussões para impor um limite à
quantidade de terra que uma única pessoa, física ou jurídica, poderia
possuir. Pois nenhum direito humano é absoluto (nem o direito à vida,
haja visto a legítima defesa). E o direito à propriedade, quando serve
como instrumento de opressão e para inviabilizar outros direitos, como
alimentação e moradia, ou seja, não cumprindo sua função social com
prevê a Constituição, também se torna relativo.
Conceitos
relevantes que ajudam a explicar a sociedade em que vivemos não devem
ser impostos, pois é grande a parcela de pessoas e instituições
que acreditam na existência de latifúndios (elemento cuja
persistência ajuda a explicar o que somos) e seus impactos positivos ou
negativos. A tentativa de disputa simb ólica se faz presente: dizer
insistentemente que um “copo'' não pode ser chamado de “copo'' e sim de
“jarro'' até que as pessoas aceitem isso não é a melhor política.
Seria,
portanto, ótimo se o ministério encampasse esse debate: O que são
latifúndios? E ao se confirmar que eles não são ficção, podemos fazer
uma reforma agrária decente com parte deles?
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