Recentemente, o governo federal anunciou que as obras de transposição
do Rio São Francisco ficariam prontas até 2015. A promessa veio em meio
a denúncias de lentidão nas obras, de sucessivos anúncios de aumento
dos custos, de problemas no saneamento do rio e críticas de movimentos
sociais sobre a validade da transposição para abastecer as famílias.
Confira entrevista de Roberto Malvezzi, o Gogó,
da Articulação Popular São Francisco Vivo e da Comissão Pastoral da
Terra e pesquisador do tema, ao Portal Minas Livre, sobre a situação
atual das obras, das alternativas de convivência com o semiárido e do
trabalho da Articulação.
ML – Recentes anúncios do governo prometem que as obras de
transposição do São Francisco devem ficar prontas em 2015. Além disso, o
custo foi reajustado para R$ 8,2 bilhões, e deve ainda ter novo
reajuste. Por que essa demora e por que o aumento dos custos?
RM – São várias as razões para o alongamento do prazo da obra e também de seus custos. A primeira, sem dúvida, é seu gigantismo. São 700 km de canais, que exigem escavamento, revestimentos, túneis, estações de bombeamento, construção de barragens e uma série de outras obras para fazer o seu todo. A segunda é que ela está sendo construída por lotes, 14 ao todo. Cada lote é feito por um consórcio de empresas. Então cada empresa tem seu ritmo e suas exigências, rompendo contratos, não realizando a obra devida, abandonando os canteiros, exigindo novas licitações, exigindo aditivos, o que gera uma descontinuidade total no conjunto. Muitas vezes, quando retornam, todo trecho feito anteriormente precisa ser refeito.
Terceiro – que só soubemos recentemente – a obra começou a ser
realizada sem projetos executivos. Isso é tão grave que houve erros até
no traçado da obra, como num túnel feito em um lugar quando deveria ter
sido feito em outro. Esse último item mostra o açodamento para iniciar a
obra, o que para nós só confirma que ela foi mesmo um pagamento
eleitoral às empreiteiras, as únicas que ganharam – e estão ganhando –
com essa obra gigantesca.
ML – Houve muitas críticas da sociedade ao projeto de transposição.
Há alguma participação social na gestão do projeto? Os movimentos e
pessoas atingidas são ouvidos?
RM – Não há nenhuma participação da população. Aliás, repete-se toda a práxis das grandes obras do regime militar: povo alheio, obra imposta, más indenizações, relocações da população que tem sua vida mudada e não sabe mais o que fazer da vida, expectativa pela água que lhe foi prometida, assim por diante. Há um certo acompanhamento dessa população, particularmente no Eixo Leste, por parte da Comissão Pastoral da Terra junto aos atingidos. Mas, as ações de resistência são mínimas, já que as populações que tinham que ser relocadas, ao menos a maioria, já foram transferidas.
ML – Quantos trechos da obra já foram inaugurados e o que eles trouxeram de benefícios ou prejuízos para a população?
RM – Inaugurado apenas um, que é o trecho de tomada de água do Eixo Norte, próximo a Cabrobó, feito pelo Exército. Mesmo assim o sistema de bombeamento na captação de água ainda não está instalado. O nível de execução é variado de lote a lote, inclusive alguns tendo que ser refeitos.
O governo deu como concluído cerca de 40% da obra. Olhando a olho nu, achamos que está próximo da realidade, mas o detalhe é que questões mais difíceis, como os túneis para vencer o divisor de água entre Pernambuco e Paraíba, serão demorados e as obras estão muito atrasadas. Além do mais, está óbvio que o governo está investindo mais nas obras da copa do mundo que na Transposição.
Não há absolutamente nenhum benefício para a população até agora.
ML- Como você avalia a declaração de Dilma de que “para cada R$ 1 que
colocamos na interligação [do Rio São Francisco], temos que colocar R$ 2
nas outras obras estruturantes articuladas com a obra da interligação”?
Como estão as obras de convivência com o semiárido, como a construção
de cisternas de placas?
RM – Essa é uma questão chave. A Transposição, embora o marketing diga que vá abastecer 12 milhões de pessoas, na verdade apenas transfere água do São Francisco para os grandes açudes da região receptora, como o Castanhão no Ceará e o Armando Ribeiro no Rio Grande do Norte. Ela não faz a distribuição da água sequer para o meio urbano, muito menos para o meio rural.
Sempre criticamos isso. Então, aos poucos, o governo foi incorporando
as críticas. Para fazer essa distribuição, que não estava prevista, é
necessário um outro orçamento, ainda não feito. Dilma fala que para
fazer as adutoras da distribuição será necessário um outro orçamento que
é o dobro da própria Transposição. A verdade é que essa obra foi
planejada para grandes interesses econômicos, não para saciar a sede do
povo. Como ela está se comprovando longa, cara, inviável, o governo está
buscando uma saída honrosa para o atoleiro que se meteu. Pensar em
fazer a distribuição dessa água pode ser uma saída inteligente.
Por outro lado, as pequenas obras hídricas, como as cisternas, é que
modificaram a relação da população com a seca. Se hoje não existe o
genocídio humano de trinta anos atrás, se não há intensas migrações, nem
necessidade de “frentes de emergência”, é porque o povo pode beber água
e comer onde está, mesmo em meio à seca. A energia que chegou, os
poços, as adutoras, as cisternas, as políticas de distribuição de renda,
etc., ainda que não tenham resolvido o problema, até porque estamos
longe de atingir um nível de difusão satisfatório, ao menos impediram
que a tragédia humana voltasse a se repetir.
ML – Houve denúncias recentes de paralisação nas obras de saneamento
do Rio no Norte de Minas. Essa situação se observa ao longo da bacia?
Qual a realidade do São Francisco hoje?
RM – O saneamento é uma reivindicação da Articulação Popular São Francisco Vivo, num contexto geral de revitalização do rio e sua bacia. De fato, é onde o governo está pondo dinheiro. Outra reivindicação nossa são as adutoras e, premido pela seca, o governo tem feito rapidamente muitas adutoras importantes, como a de Guanambi, saindo do São Francisco e abastecendo aproximadamente 200 mil pessoas. Vamos sair dessa seca terrível mais infraestruturados do que entramos.
Acontece que existe uma promiscuidade histórica entre o dinheiro
público e o capital privado. Um gestor da Codevasf nos afirmou
pessoalmente que existem muitas empresas ruins, obras mal planejadas, o
que acaba em obras inconclusas, desvios, perdas, onde o prejudicado é
sempre o público, devido o sumiço do dinheiro público. A situação do
saneamento ao longo do vale do São Francisco está nessa base. Por isso, a
Articulação está propondo criar núcleos urbanos com a população
envolvida para tentar fiscalizar essas obras, tentar fazer com que elas
cheguem ao seu termo com qualidade. Não vemos outra possibilidade de
efetivar o saneamento, tão necessário, a não ser dessa forma.
ML- O que é a Articulação São Francisco Vivo e como ela atua em relação à transposição do rio?
RM – A Articulação, como já diz o nome, é um conjunto de entidades, povos tradicionais, ONGs, Sindicatos, Pastorais, Igrejas, populações, etc., que decidiu fazer uma atuação conjunta para revitalizar o Rio São Francisco. O lema é: “São Francisco Vivo: Terra, Água, Rio e Povo!”
Tem uma equipe liberada para fazer esse trabalho de Articulação ao
longo de todo Vale. São quatro pessoas mais um articulador geral. Porém,
o que importa mesmo é o envolvimento dos interessados na vida do rio. E
é muita gente.
Sabemos que o gesto profético de Frei Luis Cáppio apontava não só
para os problemas da obra da Transposição, mas para o futuro desse rio,
desse país, da humanidade. Afinal, que mundo queremos para nós e as
próximas gerações? Nossa luta é nossa resposta.
Entrevista socializada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Secretaria Nacional e reproduzida pelo EcoDebate, 28/03/2013
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