Nas gravações de “Chapada do Apodi – morte e vida”, conhecemos José
Holanda. Agricultor sem terra, durante 12 anos, foi peão na fazenda Boca
da Mata, no alto da Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte. Ganhava
muito pouco, comprava na bodega do fazendeiro, não podia criar animais
e, de tempos em tempos, pulverizava com agrotóxico uma lavoura de
algodão, usando nas costas uma bomba que acabava derramando veneno em
seu corpo. Em 1997, ele e os companheiros que trabalhavam naquela
fazenda se organizaram para ocupá-la e exigir sua desapropriação para a
reforma agrária. Conseguiram: a antiga fazenda Boca da Mata é hoje o
Assentamento Moaci Lucena.
Em 2013, 15 anos depois do que José chama de “o nascimento de uma
nova vida”, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS)
quer implementar nesta porção potiguar da chapada, que fica na divisa
entre os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, um projeto de
irrigação que pretende levar água para o alto da serra.
A pior seca dos últimos 50 anos não meteu medo nos 6 mil agricultores
familiares que vivem em Moaci Lucena e em dezenas de outras comunidades
desse pedaço do Rio Grande do Norte. Seguiram produzindo polpa de
frutas, mel, hortaliças e criando pequenos animais para o consumo dos
centros urbanos próximos e das próprias famílias, graças às tecnologias
de convivência com o semiárido de que se apropriaram e desenvolveram.
Veneno
Mas o projeto de irrigação do DNOCS, esse sim, tem lhes tirado o sono. O projeto prevê o monocultivo de cacau e uva no sertão potiguar, com uso intensivo de agrotóxicos – inclusive com a temida pulverização aérea, que, com sua potência e imprecisão, acerta seus alvos e tudo o mais que está em volta – e foi elaborado sem qualquer participação das comunidades que há tempos vivem e produzem naquele território. Comunidades inteiras deverão ser desalojadas. Para quem conviveu com veneno e pobreza por anos a fio e hoje vive com autonomia, saúde e dinheiro no bolso, isto é um retrocesso escandaloso.
As promessas desse tipo de projeto são bem conhecidas desses
agricultores. Não muito longe dali, no fim dos anos 1980, o mesmo DNOCS
emplacou um projeto de irrigação no lado cearense da Chapada do Apodi. A
área irrigada, que alcança os municípios de Limoeiro do Norte, Quixeré e
Russas, foi ocupada por cinco grandes empresas de fruticultura,
desestruturando a produção de milhares de pequenos agricultores.
Imagens: Reprodução.
Nessas três cidades, a incidência de câncer é 38% maior do que em
cidades com população semelhante, mas que não estão expostas a tanto
veneno. No bairro da Cidade Alta, em Limoeiro, onde vivem muitos dos
trabalhadores da fruticultura irrigada, não é preciso ir longe pra ouvir
histórias de intoxicação aguda. Ali, há três anos, o líder comunitário
Zé Maria do Tomé foi assassinado por denunciar a contaminação por
agrotóxicos dos canais de irrigação que servem tanto às lavouras quanto
às comunidades. O gerente de uma das empresas fruticultoras é acusado de
ser o mandante do crime.
A violência, o envenenamento, o uso irresponsável dos recursos
naturais, a desestruturação de cadeias produtivas e o desaparecimento de
saberes construídos na luta pela terra e na convivência harmônica com o
meio ambiente parecem ser o preço a pagar por esse modelo de
desenvolvimento que “mata uns de fome e outros de barriga cheia”, como
diz José Holanda. Mas nem os trabalhadores rurais de Limoeiro do Norte,
explorados e intoxicados, nem os agricultores da chapada potiguar,
ameaçados, se dão por vencidos.
É o que sentimos nas filmagens, na convivência com os trabalhadores
da fruticultura que defendem a dignidade possível com humor e
solidariedade com os companheiros, enquanto buscam novas alternativas de
vida e profissão. É o que está em toda parte em Moaci Lucena: no bebê
de Zé Holanda, nas crianças sabidas e sadias, nos quintais produtivos,
no rebanho de bodes que espera o fim da estiagem pra voltar a se
multiplicar. O que está em disputa na Chapada do Apodi é nada a menos do
que o direito à saúde, que separa a vida da morte.
Eco Bebate
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