O Brasil detém pouco mais de um décimo das reservas de água potável do
mundo, no entanto, o país já registra um conflito por água a cada quatro
dias, segundo o mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra,
órgão ligado à Igreja Católica, obtido com exclusividade pela BBC
Brasil. Em 2013, foram registradas 93 disputas locais em 19 Estados, 17%
a mais do que no ano anterior. Mas esses conflitos não estão se
tornando apenas mais frequentes. Também vêm assumindo dimensões
inéditas.
Há pouco mais de uma semana, os governos de São Paulo e Rio de Janeiro
vivem um embate. A razão é o projeto de São Paulo de captar água do Rio
Paraíba do Sul e levá-la ao sistema Cantareira, grupo de reservatórios
que abastece 15 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo e
no interior do Estado. O problema é que este rio já abastece outras 15
milhões de pessoas no Grande Rio e no interior paulista. O governo
fluminense é contra a proposta. Desde então, Rio e São Paulo trocam
farpas e ameaças de processo publicamente.
Não se tinha notícia - até agora - de um conflito desta proporção,
envolvendo os dois Estados mais ricos da federação e que coloca em jogo o
abastecimento de 15% da população do país. 'É o conflito mais sério que
já tivemos', diz Sandra Kishi, procuradora regional da República e
coordenadora do grupo de trabalho de águas do Ministério Público Federal
(MPF).
Prejuízos
O Rio alega que será prejudicado porque hoje não tem outra fonte de abastecimento. São Paulo retruca que a ligação não trará prejuízos ao Rio, porque só captaria 5% do volume fornecido atualmente ao Estado fluminense e que a medida será vantajosa para ambos os Estados porque, quando chover demais no reservatório que atende São Paulo, será possível guardar o excesso de água no reservatório que atende o Rio (e vice-versa), criando um sistema de estoque para quando chover pouco.
São Paulo ainda alerta que o Rio não pode interferir na questão porque a
ligação estaria dentro dos limites paulistas. 'Providenciaremos os
documentos necessários para a permissão', diz o secretário estadual de
saneamento e recursos hídricos de São Paulo, Edson Giriboni, à BBC
Brasil. 'Sempre podemos recorrer à Justiça se necessário. Se vamos ou
não fazer isso, depende deles'.
Se a permissão for concedida a São Paulo, ela poderá ser questionada no
Supremo Tribunal Federal, instância onde são resolvidas as contendas
entre Estados. 'Não se pode dizer que vai fazer o quiser porque o rio é
fluminense ou paulista. O curso da água não respeita fronteiras', afirma
Kishi, do MPF. 'Essa decisão caberá ao comitê que administra a bacia do
Paraíba do Sul.'
Fim da ilusão
Haver disputas por água no Brasil é uma situação que, a princípio, parece contraditória. O país detém 12% da água potável do mundo e sempre foi apontado como uma das regiões do planeta onde haverá menos riscos de falta de água neste século.
Mas a estiagem entre dezembro e fevereiro passados, a pior em oito
décadas, mostrou que essa abundância é uma ilusão. Há muita água, mas
ela está mal distribuída. Cerca de 80% fica na região amazônica, onde
vive 5% da população. Os outros 95% dos brasileiros precisam dividir os
20% que restam.
Esse problema se agrava porque grande parte das fontes de água nas
regiões mais populosas do país está poluída demais. Um levantamento da
ONG SOS Mata Atlântica mostra que 40% de 96 rios, córregos ou lagos das
regiões Sul e Sudeste apresentam qualidade ruim ou péssima. Quanto mais
próximo dos centros urbanos, pior sua situação.
'A ideia de abundância nos mimou', diz Rômulo Sampaio, do centro de
meio ambiente da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no
Rio. 'Os políticos não investiram o suficiente porque pensaram que não
seria necessário e ainda maltratamos os recursos que temos.'
Conflito de interesses
Isso obriga cidades a ir buscar água cada vez mais longe. Em algum momento, seus interesses entram em conflito. É o que ocorre entre Rio e São Paulo e entre outros Estados brasileiros (veja box ao lado).
Com a estiagem, o nível do sistema Cantareira chegou a 14%, o menor
nível desde sua criação. A fragilidade do sistema que abastece metade da
população da Grande São Paulo ficou evidente e fez o governo paulista
querer por em prática o projeto do Paraíba do Sul, que estava em estudo
havia seis anos.
'Solucionar a questão hídrica é o maior desafio do Direito ambiental
hoje', afirma Sampaio. 'Temos boas regras para lidar com isso, criadas
nos anos 1990. Agora elas serão testadas.'
De quem é a água?
A Política Nacional de Recursos Hídricos foi criada em 1997 e, desde então, é o principal norte da gestão da água no país. Nela, foram estabelecidos princípios importantes, como a prioridade do abastecimento humano e de animais e o incentivo ao uso eficiente da água. Mas a lei não diz quem tem mais direitos sobre determinada fonte hídrica.
O advogado Paulo Affonso Leme Machado, ex-consultor da ONU e um dos
mais respeitados especialistas em Direito ambiental no país, defende uma
interpretação conjunta de três artigos da política que daria prioridade
ao uso das águas de uma bacia aos habitantes dos municípios que existem
nela.
'Isso não está expresso na lei, mas pode ser inferida porque ela
estabelece a bacia hidrográfica como unidade mais importante do sistema
hídrico, cria o controle do uso e afirma que tudo que é arrecadado com
suas águas deve ser reinvestido, em primeiro lugar, na própria bacia',
diz Machado.
A partir dessa interpretação, defendida também por outros juristas
consultados pela BBC Brasil, São Paulo não teria o direito de usar
recursos de uma bacia fora de seus limites geográficos em prejuízo de
outras cidades que estão nesta bacia. 'Fazer isso é mais que injustiça, é
anarquia', diz Machado.
Teste nos tribunais
Esta interpretação ainda não foi testada nos tribunais, o que pode ocorrer em breve não só por causa da disputa entre Rio e São Paulo, mas também por outro conflito envolvendo a Grande São Paulo.
A permissão de uso do Cantareira expirará em agosto e está sendo
rediscutida. Além da região metropolitana da capital paulista, este
sistema abastece 76 cidades no interior do Estado, que pedem mais água
além do limite atual para a região, de 3 mil litros por segundo.
No entanto, o Cantareira já opera no limite estabelecido por regras
ambientais. Para o interior ter mais água, seria preciso reduzir o
volume de 24,8 mil litros por segundo fornecido à Grande São Paulo, que
por sua vez também pleiteia um limite maior. Não será possível atender
às duas regiões sem causar danos ao sistema.
As cidades do interior alegam que, na nova permissão de uso do
Cantareira, é preciso haver uma distribuição mais equilibrada da água,
princípio previsto em convenções internacionais sobre o tema. As cidades
do interior afirmam que, se isso não for feito, sua economia não poderá
mais crescer, porque novas indústrias que dependem de água não
conseguirão licenças ambientais.
Estas cidades ainda questionam por que não foi cumprida a condição
prevista na permissão de uso do Cantareira concedida há dez anos de
fazer investimentos para reduzir a dependência da Grande São Paulo em
relação a este sistema. 'Pedimos explicações ao governo estadual para
resolver isso na esfera administrativa, mas iremos à Justiça se as
respostas não forem satisfatórias', diz a promotora Alexandra Faccioli,
do Ministério Público Estadual.
Novos conflitos à vista
O debate sobre o uso da água é mais relevante diante da previsão de que os conflitos hídricos serão mais comuns daqui em diante. Segundo o Pacific Institute (IP), um dos principais institutos de pesquisa sobre o tema do mundo, o número de disputas hídricas violentas no mundo quadruplicou na última década e o risco de novos conflitos só crescerá com a maior competição pelo recurso, o atual gerenciamento ruim das fontes hídricas e os impactos das mudanças climáticas.
Antônio Carlos Zuffo, especialista em planejamento hídrico da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ainda alerta que a
oscilação histórica do clima acentuará a falta d'água. O pesquisador
explica que entre 1970 e 2012 houve chuvas até 30% acima da média
histórica. 'Agora estamos entrando num período de algumas décadas de
chuvas abaixo da média', afirma Zuffo. 'A disputa por água se
intensificará.'
Os órgãos federais se dizem preocupados com esse acirramento dos
conflitos e trabalham para mediá-los antes que se agravem a ponto de a
única solução ser a via judicial. No caso específico entre Rio e São
Paulo, isso significa fazer com que os dois Estados cheguem a um
entendimento baseado em estudos sobre o aproveitamento das águas do
Paraíba do Sul.
'Nosso papel é estimular um debate técnico e evitar a politização dessa
questão, para que esse tipo de problema não caia na Justiça', afirma
Rodrigo Flecha, superintendente de regulação da Agência Nacional de
Águas (ANA).
Para o secretário nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do
Ministério do Meio Ambiente, Ney Maranhão, os dois Estados precisam
chegar a um consenso quanto a uma gestão compartilhada destes recursos
hídricos.
'Rio e São Paulo precisam sentar à mesa e elaborar um sistema que seja
confortável para os dois lados', afirma Maranhão. 'Uma discussão dessa
natureza não pode ser discuta emocionalmente.'
G1 Natureza
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