Mesmo depois de ter sido oficialmente fechado há dez anos, o Lixão do
Roger continua sendo cenário de duas cenas que deveriam ter ficado no
passado: caminhões carregados de resíduos e crianças a procura de lixo
reciclável para vender. A cena foi flagrada pelo G1
numa tarde do mês de julho, mas, segundo relatos dos moradores da
região, é cotidiana. O registro foi de três caminhões a serviço da
prefeitura de João Pessoa,
carregados de restos de limpeza em galerias da cidade, que contavam com
a ajuda de um trator para despejar os detritos no solo. Enquanto isso,
três meninos em torno dos 10 anos aproveitavam para procurar lixo que
poderia ser vendido, uma atividade que lhes rende de R$ 5 a R$ 10 por
dia.
Segundo o diretor operacional da Autarquia Especial Municipal de
Limpeza Urbana (Emlur), Mozart de Castro, os resíduos que estão sendo
depositados no Lixão são 'inertes ou orgânicos'. “O que sai das galerias
é lama argilosa ou areia, que serve para ajudar a fechar as fendas
entre as células do antigo Lixão, fazendo uma selagem”, justifica.
Mozart também explica que todo o terreno foi dividido em células, que
foram “rasgadas de cima abaixo para colocar drenos e fazer o trabalho de
mediação” do solo.
Mozart garante que nem resultado de poda de árvores pode ser depositado
no local e que "muitas entidades, como o Ministério Público, estão de
olho no que está sendo feito ali, há muita fiscalização". “Não temos
recursos para fazer esse trabalho de outra forma, por isso aproveitamos o
material que sai das galerias”, diz, adiantando que só falta uma célula
passar pelo processo, mas que não há previsão de quando será encerrada a
colocação dos resíduos no terreno.
O Lixão do Roger foi fundado em 1958 para receber o lixo produzido na capital da Paraíba
e, em 2003, quando foi fechado, os 17 hectares do local recebiam
diariamente 1 mil toneladas de detritos. O acúmulo de lixo fez nascer
uma comunidade no entorno do Lixão, formada por famílias que viviam do
que conseguiam catar no local – para comer ou para vender.
Na época do fechamento, em agosto de 2003, o projeto da prefeitura era
transformá-lo em um parque, que teria área de lazer com quadra de
esportes, um auditório para crianças e jovens participarem de aulas
sobre a história do lugar e um memorial com exposição fotográfica. O que
o G1 encontrou dez anos depois, no entanto, foi bem
diferente. Há 32 famílias que ainda moram no local e a única vegetação
que cresceu no solo é uma planta chamada de 'mata-pasto', uma erva
daninha que infesta principalmente beiras de estrada e terrenos baldios.
O cheiro de decomposição ainda é presente e facilmente se encontra
terra revirada deixando o lixo inorgânico visível.
O ciclo vicioso de pobreza
Muitas histórias também vão se repetindo neste ciclo, já que todas as famílias que moram dentro dos limites do Lixão continuam vivendo, de uma forma ou outra, do lixo. O catador José Gomes de Tourinho, de 55 anos, mora na comunidade desde que tinha 7 anos e viveu muito tempo do que a família tirava do lixo. Ele só estudou até a 3ª série e começou a trabalhar no Lixão aos 15 anos. “Trabalhei muito à noite, esperando os caminhões desse horário, que sempre foram os melhores”, lembra.
Mesmo depois de ter conseguido se habilitar para dirigir e trabalhar
como motorista, José não conseguiu sair da vida de catador e hoje
trabalha recolhendo caixas de papelão de lojas do Centro. Consegue R$
600 por mês arrastando sua carroça pelas ruas da cidade, sempre no
horário entre 16h e 21h, mas sabe que seu caso é exceção. “Isso aqui não
mudou nada e se mudou foi pra pior. O povo continua vivendo na mesma
pobreza daquela época, só que agora muitos não têm nem o que comer”,
avalia.
Quem acha graça quando se fala do parque que seria construído no lugar
são os jovens que aproveitam um trecho plano e firme do terreno para
improvisar um campinho de futebol. Com 18 anos, um deles, que não quis
se identificar, lembra que chegou pequeno no Lixão e que comeu muito
salame, queijo e bolacha retirados do lixo quando era criança. “Eu
achava ruim porque já sabia que era poluído. Mas depois o Lixão fechou e
não mudou nada na situação. Falta muita coisa, não tem nada pra quem
mora aqui”, se queixa.
Concordando com a opinião dos jovens, o hoje pedreiro José Miguel
Maranhão, 56 anos, acha que a vida no lugar piorou nestes dez anos. “Não
tem assistência médica, não tem saneamento, não tem escola. O solo não
tem condição de construir nada. Quando chove, a água vem dos dois lados,
já que as casas ficam na margem do mangue. E ainda tem os caminhões que
continuam jogando lixo aqui todos os dias”, reclama. “O lixo saiu, mas
não deixou nada de bom pra comunidade”, conclui, destacando que “as
autoridades se afastaram e que hoje só se vê miséria por todo lado”.
Na outra ponta estão os três meninos que catavam pedaços de cobre entre
os entulhos velhos e novos do Lixão. Descalços, usando luvas velhas e
levando na mão facões enferrujados, os meninos revelam um sonho: queriam
poder trocar o dinheiro da venda de recicláveis por um vídeo game. “Eu
às vezes como um lanche, compro um refrigerante, mas às vezes também dou
pra minha mãe comprar alguma coisa em casa”, contou um deles.
Esperança na mudança
Nos últimos anos a comunidade tem se fortalecido para mudar o quadro. Com o apoio da Casa Pequeno Davi, Ong que atua no bairro e que tem preparado as lideranças para se organizarem, Maranhão diz que agora vê perspectivas de mudança. “Nunca acreditei tanto quanto eu acredito hoje”, revela. Segundo o técnico da Casa Pequeno Davi, Mirley Jonnes da Silva, o diálogo com os gestores tem avançado na medida em que a comunidade vai se fortalecendo e conhecendo seus direitos. “Quando o gestor vem conversar com os moradores, percebe que eles não estão pra brincadeira e que cansaram de ser invisíveis”, avalia.
De acordo com o secretário do Orçamento Participativo (OP) do
município, Hildevânio Macedo, as famílias que moram dentro dos limites
do Lixão devem ser transferidas para um condomínio com 852 unidades que a
prefeitura está construindo no bairro do Cristo e que deve ficar pronto
neste mês de agosto. A decisão foi tomada em uma audiência do OP
realizada na comunidade no dia 9 de julho. “Além delas, as famílias que
moram na Comunidade do S, que fica às margens do limite do Lixão, e
estão sendo atendidas atualmente pelo auxílio aluguel também serão
relocadas”, explica.
O problema maior, segundo o engenheiro ambiental da Emlur, Pedro
Rogério Rocha, é que o local “teve também problemas como resíduos
industriais e por estar em uma área ambientalmente frágil”. Segundo ele,
atualmente a prefeitura monitora diversos aspectos da região, como água
subterrânea, água superficial, geotecnia, sedimento, chorume e queima
de gás. O projeto estava previsto para atender as cinco células, sendo
que em duas células o processo já foi concluído, uma está em andamento e
outras duas foram simplesmente encerradas.
Não existe orçamento nem datas previstas para novas intervenções no
local por parte da prefeitura. “O projeto antigo precisa ser revisado e
adaptado, muita coisa mudou na legislação e nas tecnologias ambientais
nesses últimos dez anos, como por exemplo o surgimento do Plano Nacional
de Resíduos Sólidos. Pensamos, sim, em manter a ideia inicial da
criação do parque, mas podemos inovar mais, criar espaços para inclusão
de catadores promovendo benefícios econômicos, criar um espaço de
educação ambiental, entre outras ideias discutidas na Emlur”, explica o
engenheiro.
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