É equivalente a dar oito voltas na Terra — ou a andar 344 mil
quilômetros — a distância percorrida por pesquisadores durante 212
expedições ao longo e no entorno do Rio São Francisco, entre julho de
2008 e abril de 2012. O trabalho mapeia a flora do entorno do Velho
Chico enquanto ocorrem as obras de transposição de suas águas, que
deverão trazer profundas mudanças na paisagem. Mais do que fazer
relatórios exigidos pelos órgãos ambientais que licenciam a obra, o
professor José Alves Siqueira, da Universidade Federal do Vale do São
Francisco (Univasf), em Petrolina, Pernambuco, reuniu cem especialistas e
publicou o livro “Flora das caatingas do Rio São Francisco: história
natural e conservação” (Andrea Jakobsson Estúdio). A obra foi lançada em
Recife este mês.
Em 556 páginas e quase três quilos de textos,
mapas e muitas fotos, a publicação é o mais completo retrato da
Caatinga, único bioma exclusivo do Brasil e extremamente ameaçado. O
título do primeiro dos 13 capítulos, assinado por Siqueira, é um alerta:
“A extinção inexorável do Rio São Francisco”.
— Mostro os
elementos de fauna e da flora que já foram perdidos. É como uma
bicicleta sem corrente, como anda? E se ela estiver sem pneu? E se na
roda estiver faltando um raio, e quando a quantidade de raios perdidos é
tão grande que inviabiliza a bicicleta? Não sobrou nada no Rio São
Francisco. Sinceramente, não sei o que vai acontecer comigo depois do
livro, mas precisava dizer isso — desabafa o professor da Univasf. —
Queremos que o livro sirva como um marco teórico para as próximas
décadas. Vou provar daqui a dez anos o que está acontecendo.
Ao
registrar o estado atual do Rio São Francisco, o pesquisador estabelece
pontos de comparação para uma nova pesquisa, a ser feita no futuro,
medindo os impactos dos usos do rio. Além do desvio das águas, há
intenso uso para o abastecimento humano, agricultura, criação de
animais, recreação, indústrias e muitos outros. Desaguam no Velho Chico
milhares de litros de esgoto sem qualquer tratamento. Barramentos —
sendo pelo menos cinco de grande porte em Três Marias, Sobradinho,
Itaparica, Paulo Afonso e Xingó — criam reservatórios para usinas
hidrelétricas. Elas produzem 15% da energia brasileira, mas têm grande
impacto. Alteraram o fluxo de peixes do rio e a qualidade das águas,
acabaram com lagoas temporárias e deixaram debaixo d’água cidades ou
povoados inteiros, como Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e
Sobradinho.
Com o fim da piracema, uma vez que os peixes não
conseguiam mais subir o rio para se reproduzir, o declínio do número de
cardumes e da variedade de espécies foi intenso. Entre as mais afetadas,
as chamadas espécies migradoras, entre elas curimatá-pacu,
curimatá-pioa, dourado, matrinxã, piau-verdadeiro, pirá e surubim.
Não
foram as barragens as únicas culpadas pelo esgotamento de estoques
pesqueiros do Velho Chico. Programas de incentivo da pesca, que não
levaram em consideração a capacidade de recuperação dos cardumes,
aceleraram a derrocada da atividade. Espécies exóticas, introduzidas no
rio com o objetivo de aumentar sua produtividade, entre elas o
bagre-africano, a carpa e o tucunaré, se tornaram verdadeiras pragas,
sem oferecer lucro aos pescadores.
A região do São Francisco, que
já foi considerado um dos rios mais abundantes em relação a pescado no
país, precisa lidar com a importação em larga escala de peixes,
sobretudo os amazônicos, para suprir o que não consegue mais fornecer.
Uma das espécies mais comercializadas na Praça do Peixe, a 700 metros do
rio, é o cachara (surubim) do Maranhão ou do Pará. Nos restaurantes
instalados nas margens do Rio São Francisco, o cardápio oferece tilápias
cultivadas ou tambaquis importados da Argentina.
A mudança
provocada pelo homem tanto nas águas do Velho Chico quanto na vegetação
que o circunda foi drástica e rápida. Tendo como base documentos
históricos disponíveis, entre eles ilustrações de expedições de
naturalistas importantes, como as do alemão Carl Friedrich Philipp von
Martius, é possível ver a exuberância do passado. Um desenho feito há
195 anos mostra os especialistas da época deslumbrados com árvores de
grande porte, lagoas temporárias, pássaros em abundância. Ou seja, uma
enorme biodiversidade, que hoje não existe mais.
Menos de dois
séculos depois, restam apenas 4% da vegetação das margens do Rio São
Francisco. Desprovidas de cobertura verde, elas sofrem mais com a
erosão, que assoreia o rio em ritmo acelerado. Os solos apresentam altos
índices de salinização e os açudes ficam com a água salobra. Aumentam
as áreas de desertificação. O Velho Chico está praticamente inviável
como como hidrovia. Espécies foram extintas e ecossistemas estão
profundamente alterados.
Diante da expectativa da “extinção
inexorável do Rio São Francisco”, o livro ressalta a importância de
gerar conhecimento científico. Não apenas os pesquisadores precisam se
debruçar mais sobre o bioma como também o senso comum criado sobre a
Caatinga a empobrece. Por isso o título do livro optou por “Caatingas”,
no plural, chamando a atenção para sua enorme diversidade.
— O
processo que levará ao fim do Rio São Francisco não começou hoje. Basta
olhar a ilustração para ver o que aconteceu em tão pouco tempo, menos de
200 anos. A imagem nos mostra um bioma surpreendente: o tamanho das
árvores, a diversidade de animais, a exuberância — ressalta Siqueira.
—Observamos que ocorre um efeito em cascata. Tanto que, se algo não for
feito agora, de forma veemente, o impacto do aquecimento global na
Caatinga, que é o local mais ameaçado pelas mudanças climáticas, será
dramático.
Exclusividade do Brasil
Difundir
o conhecimento gerado durante as expedições é um dos principais legados
da publicação. Ainda mais porque trata-se de uma temática
brasileiríssima. Aproveitando o jargão ambientalista, que chama de
endêmica a espécie que só existe numa determinada região, José Alves
Siqueira diz que a Caatinga e o Rio São Francisco são dois endemismos
brasileiros. O bioma só ocorre no Brasil, assim como o Velho Chico, que é
o único corpo hídrico de grande porte que nasce e deságua em território
nacional. Além disso, entre as 1.031 espécies coletadas — a partir de
5.751 amostras —, 136 (13,2%) são restritas à Caatinga. Além disso, 25
espécies cuja ocorrência não era conhecida no Nordeste foram
encontradas. Situação semelhante ocorreu com 164 plantas, nunca antes
observadas na Caatinga. Mas a cereja do bolo é uma nova espécie coletada
por pesquisadores, que ainda estão trabalhando com as informações
obtidas em campo para publicar, até o final do ano, a descrição da
planta em uma revista especializada.
— A espécie mais próxima
desta é do Charco, na Argentina e Paraguai. Isso mostra uma relação
entre Caatinga com aquele bioma, são ecossistemas incríveis — ressalta
Siqueira. — Este é um dos resultados fabulosos do trabalho, mostra mais
uma vez que a Caatinga não é pobre, homogênea nem o patinho feio dos
biomas.
No último capítulo, “A flora das Caatingas”, assinado por
78 especialistas de 40 instituições, diversas universidades, entre elas
UFRJ e USP, jardins botânicos, Embrapa e até o Museu de História Natural
de Viena, detalha métodos de pesquisa e apresenta uma lista florística
com as 1.031 espécies. Também é possível ver informações na internet, na
página www.hvasf.univasf.edu.br/livro.
Os pesquisadores
ressaltam, ainda, que ainda há muito para se descobrir sobre a flora das
Caatingas. As plantas desenvolvem mecanismos de adaptação que são
ignoradas pela ciência. Sendo assim, os autores do livro destacam que
são necessários esforço e dedicação para que o estágio do diagnóstico da
diversidade biológica seja superado pelos estudos voltados para as
práticas de conservação. Nesta direção, a Univasf criou o Centro de
Referência para a Restauração de Áreas Degradadas.
Recuperar a
Caatinga é uma tarefa árdua, requer conhecimento científico específico.
Isso reforça a importância de manter áreas nobres ainda intocadas. A
equação é simples: é muito mais fácil e barato manter a floresta em pé
do que tentar reflorestar uma região degradada. Por outro lado, sem o
rigor acadêmico, empresas que são obrigadas a replantar em determinadas
áreas acabam fazendo as escolhas erradas, como colocar grama de
crescimento rápido e impacto visual, mas inadequada para o meio
ambiente.
Formatar um conhecimento consolidado de como recuperar a
Caatinga deverá ser um trabalho para pesquisadores durante os próximos
30 anos. Um capítulo inteiro é dedicado ao assunto: “Restauração
ecológica da Caatinga: desafios e oportunidades”, assinado por Felipe
Pimentel Lopes de Melo, do Departamento de Botânica da Universidade
Federal de Pernambuco; Fabiana de Arantes Basso, do Centro de Referência
para Recuperação de Áreas Degradadas da Caatinga, da Univasf; e
Siqueira. Os autores expressam a urgência de melhorar a relação do homem
com o meio ambiente. É fundamental superar a tensão entre a conservação
dos recursos naturais com a crescente demanda por matéria-prima, como
lenha, carvão, água e energia. Em geral, as soluções imediatistas e sem
planejamento trazem enormes prejuízos econômicos, sociais e ambientais:
os três pilares da sustentabilidade.
O livro também pode ser lido
como uma exaltação ao bioma, incluindo a chamada cultura ‘caatingueira’ e
a alma sertaneja, que não são deixadas de fora da edição. No segundo
capítulo, (“Viajantes naturalistas no Rio São Francisco”), considerado
pelo organizador do livro como o mais poético, Lorelai Brilhante Kury,
especialista da Fundação Oswaldo Cruz e da Uerj, faz um resgate
histórico e cultural das transformações ambientais.
As agressões
ao Velho Chico são históricas. O rio serviu com via de ocupação da
região. Ricos e pobres usam os recursos naturais como se fossem
infinitos. Entre Petrolina e Juazeiro, casas que valem cerca de R$ 500
mil contam com equipamentos sofisticados, segurança de primeiro padrão e
móveis caríssimos, mas a estrutura sanitária é arcaica, contamina o
lençol freático e o rio. Lanchas e motos náuticas geram ruído e
afugentam peixes. Quase não se vê reaproveitamento de água ou o uso de
fontes energéticas renováveis.
— A principal contribuição do livro
é chamar a atenção para a Caatinga. É o único bioma exclusivo do
Brasil, porém o menos conhecido. Seu personagem mais famoso é o Rio São
Francisco, que serviu de mote para o estudo de conservação da Caatinga —
frisa Felipe Melo, professor de ecologia da Universidade Federal de
Pernambuco e um dos pesquisadores envolvidos na coleta de informações
que constam do livro.
Mais do que apontar problemas, os
pesquisadores defendem a adoção de práticas sustentáveis. No final de
cada capítulo, eles apresentam medidas que poderiam mitigar impactos
social, ambiental e também econômico. Além disso, há preocupação com a
difusão das informações geradas. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro,
por exemplo, também recebe parte do material coletado pelos cientistas. A
instituição carioca poderá montar uma estufa dedicada às plantas da
Caatinga.
— É um desafio para a sociedade garantir desenvolvimento
econômico com sustentabilidade. Vamos fazer outra Sobradinho? Não. As
cidades que ficaram debaixo d’água por causa dos represamentos do Rio
São Francisco perderam histórias, vidas, sítios arqueológicos inteiros —
argumenta José Alves Siqueira. — Em síntese, posso dizer que o caminho a
ser seguido para viabilidade do São Francisco como modelo de
desenvolvimento para outras regiões é a base científica sólida. Investir
em recursos humanos, aporte de recursos financeiros para ciência,
tecnologia e educação básica.
Os diagnósticos apresentados no
livro, porém, têm prazo de validade. Os autores afirmam que são
necessárias intervenções imediatas pra tentar mudar em escala regional o
cenário de degradação. Além disso, sobram críticas em relação às
discussões que envolvem o novo código florestal. O organizador do livro
sustenta que já há conhecimento científico sólido em relação à
necessidade mínima de 30 metros de vegetação nas margens dos rios para a
proteção da qualidade da água, estabilização de encostas e prevenção a
enchentes.
Dinheiro não falta. Pelo contrário. Só as obras de
transposição de águas, originariamente orçadas em R$ 4,5 bilhões,
deverão consumir cerca de R$ 10 bilhões. São recursos federais que
prometem melhorar a qualidade de vida na região. Não é o primeiro grande
investimento público da Caatinga. Porém, analisando a história,
pesquisadores não encontraram relação direta entre o gasto e o bem-estar
para a população.
Para quebrar a ideia de que o setor público não
consegue fazer trabalhos de qualidade, os pesquisadores se esforçam
para multiplicar o legado dos programas ambientais, previstos nos
investimentos que mudarão o curso de parte das águas do Rio São
Francisco.
Desde 2008, quando o dinheiro começou a ser repassado
para a universidade, foram criados o Centro de Referência da Caatinga e
novos laboratórios. A equipe conta com dez picapes com tração nas quatro
rodas para percorrer a região durante o monitoramento da vegetação.
O
trabalho de formação de alunos se volta para o bioma local. Por
exemplo, havia uma dificuldade em achar veterinários que conhecessem os
animais do bioma, como o veado catingueiro. Até então, grande parte dos
alunos da universidade só entendia de cachorro e de gato.
— A obra
(de transposição da água do Rio São Francisco) acaba nos proporcionando
os meios para uma formação mais qualificada dentro da universidade. A
demanda é grande, falta gente especializada para trabalhar para nossa
equipe. Contratamos pessoas do Brasil inteiro — diz Siqueira. — A chave é
procurar entender as especificidades do bioma Caatinga, que, muitas
vezes, chega a passar dez meses na seca. Precisamos entender as
adaptações da fauna e flora, assim como a cultura.
O GLOBO