Na Contramão da Transposição – Na Paraíba, as águas limpas da
transposição do rio São Francisco vão se misturar a águas poluídas por
esgotos sem tratamento de diversos municípios
Definidas as últimas licitações para a execução das obras da
transposição do rio São Francisco, redimensionados os prazos de
conclusão, restabelecidas as metas e retomado o andamento, a obra avança
inexoravelmente. Na contramão da construção, porém, alguns obstáculos
terão de ser superados para o aproveitamento dessa água – que já está
saindo cara.
O pesquisador e doutor em Recursos Naturais, Augusto Silva Neto, do
Instituto Federal da Paraíba (IFPB), ressalta três pontos essenciais que
devem ser resolvidos pelos estados receptores para o aproveitamento
adequado das águas do São Francisco pela população: o esgotamento
sanitário nas cidades ao longo dos leitos dos rios e reservatórios, a
educação ambiental da população que mora nas áreas rurais e, no caso do
rio Paraíba, o controle na extração mecanizada de areia no leito do rio
para uso na construção civil, que traz grandes problemas ambientais. “É
necessária uma ação conjunta da população, dos empresários, dos
agricultores e também dos governos… De todos que irão se beneficiar com a
chegada desse precioso recurso hídrico”, destaca Augusto Neto.
“Quem está lá é que sabe do que precisa”, diz, apontando falta de
influência da população nas políticas públicas destinadas à região. “O
povo que mora na região ribeirinha tem que ser capaz de atuar em
parceria para a preservação e participar das decisões. A população tem
que se unir para preservar o sistema e só com educação ambiental é que
isso vai acontecer”.
Rio Paraíba: esgotos sem tratamento adequado
De Pernambuco à Paraíba, as águas do Velho Chico, consideradas de
excelente qualidade nesse trecho, deverão seguir do reservatório Barro
Branco, na altura de Sertânia, em Pernambuco, por galerias subterrâneas
ladeando a cidade de Monteiro (PB) até a calha do rio Paraíba, explica o
fiscal de campo Marcílio Lira de Araújo. Dali, cruzará com a BR 110 na
entrada do município de Monteiro, de onde continuará até o reservatório
Poções, distante cerca de 15 km. As obras do Eixo Leste se encerram com a
chegada das águas neste açude, já no estado da Paraíba.
A partir do Poções, as águas deverão seguir o leito do rio Paraíba,
perenizando este rio intermitente, que nasce e deságua em solo paraibano
e é um dos principais mananciais hídricos do Estado. Contudo, o
professor e pesquisador Augusto Silva Neto, que há mais de 30 anos
pesquisa o rio, afirma que todos os municípios próximos a ele lançam
esgotos sem tratamento diretamente no leito. “Todos, sem exceção”,
garante. Ou seja: as águas do São Francisco, misturadas às do rio
Paraíba, estariam contaminadas ao chegar à população paraibana.
Segundo o analista do Ibama, Ronilson Paz, o abastecimento da Paraíba
pelas águas da transposição do Rio São Francisco está condicionado à
conclusão dos sistemas de esgotamento sanitário dos municípios
relacionados à obra. Não adianta trazer água de tão longe para ser
contaminada por esgotos na Paraíba. “Esse é o maior desafio para os
estados que receberão as águas”, disse Ronilson Paz.
O reservatório Poções recebe as águas do Paraíba depois que o rio
passa por Monteiro, na Paraíba. Também recebe água de outros afluentes
que passam por municípios vizinhos. Nesse trecho, as águas do Rio
Paraíba estão contaminadas pelos esgotos sanitários e pelo lixo de
Monteiro, com seus 30.852 habitantes (Censo/IBGE 2010). A rede de
esgoto, concluída em 1987, está obsoleta, faltam reparos e equipamentos.
Esgotos residenciais estão ligados diretamente ao canal pluvial. Canos
subterrâneos apresentam vazamento e, para coroar o desmazelo, um
vazamento em um talude quebrado na lagoa de estabilização joga litros de
esgoto bruto por dia para dentro do rio. É essa água que enche o açude
Poções.
Atualmente são 6.946 ligações de esgoto e a rede não suporta mais a
demanda da população. No canal de esgotos pluviais, embora não chova há
dois anos, o esgoto continua escorrendo com grande vazão, carregado
também de resíduos sólidos lançados pela população.
O esgoto verte até do solo da cidade, através de buracos na tubulação
antiga que leva o esgoto bruto da Estação Elevatória de Esgoto (EEE),
para a Estação de tratamento. A estação elevatória é o destino final da
coleta da rede de esgoto da cidade, antes de ser conduzida para a
estação de tratamento. Quando a bomba quebra, ou quando a capacidade da
estação elevatória chega ao limite, o que acontece com frequência, todo o
excedente vai direto para o Rio Paraíba.
O rio carrega visivelmente detritos e bolhas de sabão. O gerente da
Fazenda Limão, às margens do Paraíba, Everaldo Bezerra, conta que seu
filho, portador de deficiência mental, vive trancado dentro da casa por
causa dos riscos de contaminação e mau cheiro. “O mau cheiro é grande,
as muriçocas (mosquitos) proliferam. A situação é triste”, lamenta.
Há três anos, segundo um integrante da empresa Livramento
Construções, um rompimento em um dos taludes provoca o vazamento do
esgoto que chega na estação de tratamento. O lago de esgoto formado no
solo mede cerca de 10 metros quadrados e está na margem do rio Paraíba,
misturando-se ao rio quando ele enche um pouco mais. Entre matos e
carcaças de animais mortos, a estação, construída em 2010, está
inacabada por puro descaso do poder público. “A construtora (Livramento
Construções) não terminou a obra porque o governo estadual não pagou”,
disse o integrante da construtora.
Campina Grande também joga esgotos no Paraíba
Em Campina Grande, o maior município do interior da Paraíba e pólo
industrial do Estado, a situação é a mesma, ampliada por uma população
385.276 habitantes (Censo 2010/IBGE), com 89.543 ligações de esgotamento
sanitário, de acordo com a companhia de Água e Esgotos da Paraíba
(Cagepa). Esse esgoto é coletado e enviado à estação de tratamento. O
problema é que muitas residências não fizeram a ligação das casas com a
rede de esgotos.
“Normalmente acontece através da encanação. Você compra uma casa em
um bairro que não tem esgoto. O correto é que se faça uma fossa. Mas o
construtor aconselha uma instalação no canal de água pluvial”, relatou a
engenheiro da Cagepa Ronaldo Menezes.
A prefeitura limita-se a dizer que vai fazer um levantamento para
identificar os moradores que burlam a lei. Os canais pluviais lançam o
esgoto no Rio Paraíba, que abastece a Barragem de Acauã, de onde sairá o
ramal da transposição do rio São Francisco Acauã-Araçagi.
Seguindo o curso do rio Paraíba em direção ao litoral a
paisagem muda, a vegetação ganha cores mais verdes, numa transição da
caatinga para a Mata Atlântica, as árvores ficam mais robustas e até o
ar, mais refrescante. Mas o cenário de esgotamento sanitário é o mesmo.
No município de Itabaiana, na Paraíba, (24.483 habitantes, Censo
2010/IBGE) não há sistema de esgoto; a Cagepa faz apenas o abastecimento
de água.
O afluente canalizado do Paraíba, o Treze de Maio, que corta o centro
do município, está completamente tomado de lixo. E nas margens do rio
Paraíba, diversos casebres foram instalados com esgotos caindo
diretamente no leito do rio.
Ali, o morador João Batista da Silva, médico e ambientalista, conta
que as licenças para a construção dessas casinhas eram dadas pela
Paróquia de Santo Antônio e Almas. “O cidadão chegava à paróquia e
contava sua história triste para o padre. Dizia que a solução seria
construir uma casinha na beira do rio. O padre dava a licença e o
cidadão se dirigia à prefeitura, que acatava a solicitação. Assim,
centenas de malocas foram construídas”.
Segundo a assessoria da prefeitura, no final de 2013 foi assinado um
convênio de R$ 10,6 milhões, do PAC 2, cujos recursos serão em parte
usados na construção de um sistema de drenagem de águas pluviais, redes
de abastecimento de água e esgoto sanitário.
Esgotamento e recuperação de açudes
O secretário estadual de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Ciência e
Tecnologia da Paraíba, João Azevedo, conta que foram elaborados projetos
de saneamento em 51 municípios ao longo do rio. Segundo ele, as obras
em 11 municípios serão concluídas em 2014. “Já encaminhamos o projeto
dos outros 40 municípios para a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e
aguardamos a aprovação”, afirmou o secretário.
O Ministério da Integração Nacional, por meio do Departamento Nacional
de Obras Contra as Secas, promete também revitalizar 21 açudes que
receberão as águas do Projeto de Integração do Rio São Francisco nos
quatro estados beneficiados pela transposição – Pernambuco, Paraíba,
Ceará e Rio Grande do Norte. A licitação, que vai viabilizar os estudos e
projetos executivos dos açudes, foi concluída em dezembro de 2013. A
empresa vencedora da licitação foi a KL Serviços de Engenharia. Os
equipamentos existentes serão modernizados e a infraestrutura física dos
reservatórios será melhorada. Desses, sete reservatórios estão
localizados na Paraíba, quatro no Rio Grande do Norte, seis no Ceará e
quatro em Pernambuco.
Outro problema que as águas do Rio São Francisco vão encontrar no Rio
Paraíba é o estrago causado pela extração mecanizada de areia do leito
do rio. Ela acontece no perímetro denominado Baixo Paraíba, que vai da
foz, em Cabedelo, até Pilar, no estado da Paraíba, numa extensão é de
aproximadamente 80 quilômetros. A retirada de areia do leito de rios é
considerada pela legislação ambiental brasileira ofensiva e degradante
ao ambiente.
Mas a atividade vem aumentando nessa região desde o ano 2000.
De acordo com informações do Fórum de Preservação e Defesa do Rio
Paraíba, em todos os municípios do Baixo Paraíba ocorre extração
mecanizada de areia. Cerca de 15 empresas de dragagem mecanizada atuam
ali, diz o presidente do Fórum, João Batista da Silva.
Na região, os embates entre areeiros e ambientalistas são antigos. Em
2001, a câmara municipal de Salgado de São Félix aprovou uma lei
proibindo a retirada mecanizada de areia do leito do rio. Dois anos
depois, uma lei semelhante foi aprovada no município de São Miguel de
Taipu, mas recentemente foi revogada pela câmara de vereadores. Em outro
município, Itabaiana, a casa legislativa aprovou uma lei em 2012 com o
mesmo teor, proibindo a extração do minério.
As licenças concedidas pela Superintendência de Administração do Meio
Ambiente (Sudema), órgão estadual ligado à Secretaria de Estado de
Recursos Hídricos do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, para a
extração de areia são sempre envolvidas por um manto obscuro.
Ainda em 2011, o procurador da República Duciran van Marsen Farena
emitiu a Recomendação Nº 02/11, do Ministério Público Federal, dirigida a
então superintendente da Sudema, Rossana Honorato, na qual destacava
inúmeras ilegalidades constatadas nos processos de licenciamento de
extração de areia: “Estudos apresentados de forma abstrata, sem
indicação precisa do local de exploração e medidas mitigadoras, ausência
de descrição de métodos de exploração, ausência de condicionantes para
recuperação da área degradada”, detalha o documento.
O médico e ambientalista João Batista da Silva, da Associação de
Paraibana Amigos da Natureza (Apan) e presidente do Fórum de Defesa do
Rio Paraíba, explica que com a retirada da areia, os lençóis freáticos,
localizados próximos à superfície, se deslocam para o leito, pois os
buracos deixados pela extração mecanizada de areia são profundos. “Além
disso, óleos dos motores das dragas caem diretamente no rio, causando
contaminação”. Por outro lado, não há reposição natural da areia,
retidas pelas barragens construídas ao longo do curso do rio. “Sem a
areia, o grau de evaporação das águas que virão do São Francisco será
muito maior”, conclui João Batista.
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