sexta-feira, 26 de julho de 2013

As desilusões hídricas do velho Chico


Maior obra de engenharia hidráulica em curso no mundo, a transposição do rio São Francisco foi severamente criticada durante a 65ª Reunião Anual da SBPC, em Recife.

O projeto de transposição do rio São Francisco continua em debate. Ainda é, em verdade, um tema deveras sensível aos nordestinos, e esteve na pauta da 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em Recife.

Para os que chegaram atrasados à discussão, eis o resumo da ópera: já seguem a todo vapor as obras faraônicas que deverão desviar o curso das águas do São Francisco. A ideia, em princípio até convincente, seria abastecer parte da população que vive em regiões castigadas pela inclemência das secas.

Soa como boa intenção. Mas, segundo alguns, as reais motivações de tal empreitada são obtusas. Pesquisadores há décadas questionam a legitimidade da obra – argumentando que seu verdadeiro propósito pode estar em algum ponto entre a obscuridade política e a corrupção pura e simples.

Para discutir o impasse – que há tempos assombra hidrólogos e engenheiros -, ninguém melhor que os dois mais respeitados especialistas no tema. “Sou absolutamente contrário a essa obra absurda”, dispara o agrônomo João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Seu colega não deixa barato: “É um escândalo o fato de esse projeto ainda não ter se tornado um grande escândalo nacional”, diz, consternado, o engenheiro João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Razões técnicas para tamanho radicalismo retórico? Abner e Suassuna têm aos montes.

O agrônomo da Fundaj esclarece que, ao contrário do que se pensa, a água já é abundante no semiárido nordestino. Chove, anualmente, uma média de 700 bilhões de metros cúbicos no Nordeste. O problema é que, pela proximidade em relação ao equador, os raios solares incidem quase perpendicularmente sobre o território, o que potencializa os processos de evapotranspiração. Assim, cerca de 642 bilhões de metros cúbicos anuais de água voltam à atmosfera, sobrando apenas 58 bilhões na forma líquida para uso antrópico – indicam pesquisas recentes.

“Não precisaríamos falar em seca se usássemos com inteligência uma parte desse volume de água”, garante Suassuna, que há 18 anos dedica-se ao estudo do tema. “Recursos hídricos existem, sim, no Nordeste; o que falta é seu gerenciamento correto.”

Detalhe: segundo o pesquisador da Fundaj, a transposição não resolverá o problema de abastecimento das populações difusas. “Trata-se de um projeto destinado ao grande capital, a contemplar majoritariamente os grandes produtores rurais e o setor industrial.”

Da desolação técnica à obscuridade política

Diante de tantas aparentes incongruências, por que sucessivos governos insistem na continuidade de uma obra tão controversa? “Ora, é muito simples”, diz João Abner. “A transposição do rio São Francisco é um projeto político.”

Segundo Abner, só entenderemos esse megaprojeto se entendermos a lógica de financiamento privado de campanhas eleitorais no Brasil. “Todas as empreiteiras brasileiras, um grande lobby, se beneficiam disso”, protesta o pesquisador da UFRN. “É a indústria da seca na maior escala que se pode imaginar.”

Abner não é homem de meias palavras. “Corrupção”, brada ele. “Deputados, senadores e políticos em geral são financiados pelas empreiteiras; estamos falando de uma corrupção generalizada muito maior do que o mensalão, algo muito maior do que vocês podem imaginar”, desabafa.

“Um projeto dessa magnitude tem de ser muito bem explicado; mas essa história está muito mal contada”, enfatiza. “É, na verdade, uma grande fraude técnica.”

Cifras galopantes

Segundo Abner, investimentos governamentais de R$ 20 por habitante ao ano seriam suficientes para resolver o problema de abastecimento de água de todos os camponeses nordestinos – valor menor do que o gasto com carros-pipa hoje usados. “É um problema simples, mas falta foco político.” O pesquisador garante que bastaria usar com mais sapiência a rede de açudes já existente no Nordeste e investir em tecnologia de cisternas. Vale lembrar: no polígono das secas, chove mais do que em regiões com grande sucesso agrícola na Califórnia (Estados Unidos), por exemplo.

Falando em grana, Suassuna lembrou à plateia os valores orçados para a obra de transposição em diferentes momentos. No governo José Sarney, falava-se em custos de R$ 2,5 bilhões. Já na gestão de Fernando Henrique Cardoso o valor saltou para R$ 4,5 bilhões. Com Lula, foi para R$ 6,6 bilhões. E, com Dilma, já está em R$ 8,3 bilhões. “Segundo fontes oficiais, não nos surpreenderemos se os próximos cálculos indicarem valores superiores a R$ 19 bilhões”, afirma o agrônomo.

“Sou pessimista”, confessa Abner. “A transposição das águas do São Francisco permanecerá no imaginário como a solução para a seca, e não é. Essa obra não vai terminar nunca.”

  Jornal da Ciência / SBPC

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