Maior obra de engenharia hidráulica em curso no mundo, a transposição
do rio São Francisco foi severamente criticada durante a 65ª Reunião
Anual da SBPC, em Recife.
O projeto de transposição do rio São Francisco
continua em debate. Ainda é, em verdade, um tema deveras sensível aos
nordestinos, e esteve na pauta da 65ª Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, em Recife.
Para os que chegaram atrasados à discussão, eis o resumo da ópera: já
seguem a todo vapor as obras faraônicas que deverão desviar o curso das
águas do São Francisco. A ideia, em princípio até convincente, seria
abastecer parte da população que vive em regiões castigadas pela
inclemência das secas.
Soa como boa intenção. Mas, segundo alguns, as reais motivações de
tal empreitada são obtusas. Pesquisadores há décadas questionam a
legitimidade da obra – argumentando que seu verdadeiro propósito pode
estar em algum ponto entre a obscuridade política e a corrupção pura e
simples.
Para discutir o impasse – que há tempos assombra hidrólogos e
engenheiros -, ninguém melhor que os dois mais respeitados especialistas
no tema. “Sou absolutamente contrário a essa obra absurda”, dispara o
agrônomo João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Seu colega
não deixa barato: “É um escândalo o fato de esse projeto ainda não ter
se tornado um grande escândalo nacional”, diz, consternado, o engenheiro
João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Razões técnicas para tamanho radicalismo retórico? Abner e Suassuna têm aos montes.
O agrônomo da Fundaj esclarece que, ao contrário do que se pensa, a
água já é abundante no semiárido nordestino. Chove, anualmente, uma
média de 700 bilhões de metros cúbicos no Nordeste. O problema é que,
pela proximidade em relação ao equador, os raios solares incidem quase
perpendicularmente sobre o território, o que potencializa os processos
de evapotranspiração. Assim, cerca de 642 bilhões de metros cúbicos
anuais de água voltam à atmosfera, sobrando apenas 58 bilhões na forma
líquida para uso antrópico – indicam pesquisas recentes.
“Não precisaríamos falar em seca se usássemos com inteligência uma
parte desse volume de água”, garante Suassuna, que há 18 anos dedica-se
ao estudo do tema. “Recursos hídricos existem, sim, no Nordeste; o que
falta é seu gerenciamento correto.”
Detalhe: segundo o pesquisador da Fundaj, a transposição não
resolverá o problema de abastecimento das populações difusas. “Trata-se
de um projeto destinado ao grande capital, a contemplar majoritariamente
os grandes produtores rurais e o setor industrial.”
Da desolação técnica à obscuridade política
Diante de tantas aparentes incongruências, por que sucessivos
governos insistem na continuidade de uma obra tão controversa? “Ora, é
muito simples”, diz João Abner. “A transposição do rio São Francisco é
um projeto político.”
Segundo Abner, só entenderemos esse megaprojeto se entendermos a
lógica de financiamento privado de campanhas eleitorais no Brasil.
“Todas as empreiteiras brasileiras, um grande lobby, se beneficiam
disso”, protesta o pesquisador da UFRN. “É a indústria da seca na maior
escala que se pode imaginar.”
Abner não é homem de meias palavras. “Corrupção”, brada ele.
“Deputados, senadores e políticos em geral são financiados pelas
empreiteiras; estamos falando de uma corrupção generalizada muito maior
do que o mensalão, algo muito maior do que vocês podem imaginar”,
desabafa.
“Um projeto dessa magnitude tem de ser muito bem explicado; mas essa
história está muito mal contada”, enfatiza. “É, na verdade, uma grande
fraude técnica.”
Cifras galopantes
Segundo Abner, investimentos governamentais de R$ 20 por habitante ao
ano seriam suficientes para resolver o problema de abastecimento de
água de todos os camponeses nordestinos – valor menor do que o gasto com
carros-pipa hoje usados. “É um problema simples, mas falta foco
político.” O pesquisador garante que bastaria usar com mais sapiência a
rede de açudes já existente no Nordeste e investir em tecnologia de
cisternas. Vale lembrar: no polígono das secas, chove mais do que em
regiões com grande sucesso agrícola na Califórnia (Estados Unidos), por
exemplo.
Falando em grana, Suassuna lembrou à plateia os valores orçados para a
obra de transposição em diferentes momentos. No governo José Sarney,
falava-se em custos de R$ 2,5 bilhões. Já na gestão de Fernando Henrique
Cardoso o valor saltou para R$ 4,5 bilhões. Com Lula, foi para R$ 6,6
bilhões. E, com Dilma, já está em R$ 8,3 bilhões. “Segundo fontes
oficiais, não nos surpreenderemos se os próximos cálculos indicarem
valores superiores a R$ 19 bilhões”, afirma o agrônomo.
“Sou pessimista”, confessa Abner. “A transposição das águas do São
Francisco permanecerá no imaginário como a solução para a seca, e não é.
Essa obra não vai terminar nunca.”
Jornal da Ciência / SBPC
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